PROCURADORIA-GERAL DO CÍRCULO DE LISBOA
Parecer nº 35/2012
Processo nº 254349/2012
Exmºs. Srs. Juízes Conselheiros
Aos tribunais de
jurisdição administrativa e fiscal compete a apreciação de
litígios que tenham por objecto a tutela de direitos fundamentais e
direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares, nos
termos do artigo 4º, nº1, alínea a) do Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais (doravante, ETAF).
Nesta acção, estão em
causa direitos fundamentais, bem como, direitos e interesses
legalmente protegidos, logo, os tribunais competentes para apreciar a
acção em causa são os tribunais administrativos e fiscais.
Compete ao Ministério
Público (daqui em diante, MP), nos termos dos artigos 219º da
Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP) e 1º do
Estatuto do Ministério Público, a defesa da legalidade e a tutela
do interesse público.
Nos termos do artigo 85º
do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (daqui em
diante, CPTA), o MP pode: solicitar a realização de diligências
instrutórias, pronunciar-se sobre o mérito da causa em defesa dos
direitos fundamentais dos cidadãos e de interesses públicos e
invocar causas de invalidade diversas das que tenham sido arguidas na
petição inicial, bem como quaisquer questões que determinem
nulidades ou inexistência do acto impugnado.
A acção em questão é
susceptível de tutela jurisdicional efectiva, de acordo com o artigo
2º, nº 1 e 2, alínea d) do CPTA, pois aos direitos e interesses
protegidos, corresponde uma tutela jurisdicional, que visa obter a
anulação dos actos administrativos.
Assim, estamos perante
uma acção administrativa especial, nos termos do artigo 46º, nº 1
e 2, alínea a) do CPTA.
João Bemnascido
intentou acção administrativa especial, na modalidade de acção de
impugnação de acto administrativo, contra o Ministério da Saúde e
a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (artigo
10º CPTA), em coligação passiva, de acordo com o artigo 12º, nº
1, 2ª parte, alínea a) do CPTA.
Questões prévias:
À
Administração Pública, no exercício da função administrativa,
cabe a prossecução do interesse público e respeito pelos
interesses legalmente protegidos dos particulares.
O
princípio do interesse público traduz-se numa directiva finalística
que enquadra a actividade de todas as entidades públicas na
satisfação do interesse colectivo. O interesse público é definido
pelo legislador, em cada momento, cabendo à Administração Pública,
que tem margem de liberdade, dar-lhe adequada concretização, no
desempenho da função administrativa.
Cabe
à Administração a escolha da oportunidade e da adequação do meio
de prosseguir o interesse público dentro da sua margem de livre
apreciação, sem pôr em causa as vinculações legais a que está
adstrito sob pena de ilegalidade, pois a lei não é só o limite à
actividade administrativa, mas também o seu fundamento.
Relativamente
à impugnação do acto de encerramento da Maternidade Alfredo dos
Campos (Despacho n.º 4567/2012 do Ministro da Saúde, de 5 de Abril
de 2012, publicado no Diário da República, II série, n.º 65, de
20 de Abril de 2012):
Tendo
em conta que estamos perante “um valor constitucionalmente
protegido” (artigo 64º da CRP), trata-se de uma acção popular
nos termos do artigo 9º, nº 2 do CPTA, podendo ser intentada por
qualquer cidadão que pretenda ver tutelados, em processos especiais
e cautelares, valores e bens protegidos, como a saúde pública, tal
como dispõe o artigo referido. Deste modo, o autor, no gozo dos seus
direitos civis e políticos, pode dirigir-se aos tribunais
administrativos, em defesa desses valores (artigo 2º, nº 1 da Lei
83/95).
No
entanto, o particular tem, igualmente, interesse próprio na acção,
pelo que tem legitimidade singular, nos termos do artigo 9º, nº 1
do CPTA.
Na
petição inicial refere-se a violação de diversos direitos
fundamentais, nomeadamente, o direito à vida e à constituição de
família. Pensamos que, neste caso, a discussão não deveria ser
colocada nestes termos. Estes direitos não são, de forma alguma,
colocados em causa pelo encerramento da maternidade. O único direito
que poderia estar em discussão seria o direito à saúde.
O
direito à saúde é um direito fundamental (art 64º CRP) que,
apesar de constar do catálogo dos direitos económicos, sociais e
culturais, é ideia assente de que é um direito análogo aos
direitos, liberdades e garantias, aplicando-se-lhe o seu regime (art
17º, e 18º CRP).
É
função do Estado assegurar o direito à protecção da saúde,
garantindo este acesso aos cidadãos, independentemente das suas
condições económicas (art 64º/3 CRP). Como prestação positiva
da actuação do Estado, pressupõe a racionalização dos recursos
disponíveis, estando a sua realização dependente da realidade
económica.
O
legislador concretizou este comando constitucional em vários
diplomas legais, entre os quais: a Lei de Bases da Saúde (lei nº
48/90, de 24 de Agosto, alterada pela lei nº 27/2002 de 8 de
Novembro e o Decreto-lei nº28/2008 de 22 de Fevereiro (estabelece o
regime de criação, estruturação e funcionamento dos agrupamentos
de centros de saúde do sistema nacional de saúde).
No
entanto, concluímos que este direito também não seria violado, uma
vez que se encontram diversos hospitais com maternidade na Área
Metropolitana de Lisboa, como por exemplo, o Hospital de Santa Maria
ou o Hospital de S. Francisco de Xavier.
Além
disto, o historial clínico da paciente seria transferido para a
Maternidade PPP, o que não poria em causa a sua saúde, pois a
equipa clínica que a seguisse na referida unidade hospitalar teria
acesso a toda a informação relativa à sua condição médica.
Relativamente
aos princípios constitucionais arguidos como tendo sido violados
pela decisão de encerramento, como os princípios da tutela da
confiança, da igualdade, da imparcialidade e da justiça, não se
encontram, mais uma vez, violados.
O
princípio da tutela da confiança não foi violado, pois entendemos
que isto só aconteceria, por exemplo, no caso de a paciente já ter
o seu parto marcado, porque nesse caso já teria uma legítima
expectativa de realizar o seu parto naquele estabelecimento. Não
tendo esta marcação sido feita, a paciente não tem qualquer
expectativa tutelável, inclusivamente, porque quando uma cidadã
entra em trabalho de parto inesperadamente é levada para o hospital
mais próximo e não para aquele no qual foi seguida durante a sua
gravidez.
Os
princípios da igualdade, da imparcialidade e da justiça não são,
igualmente, violados, pois estas questões não se colocam no caso em
apreço. O princípio da igualdade não é colocado em causa, porque
todos os pacientes irão ter igual acesso aos vários hospitais da
Área Metropolitana. Quanto ao princípio da imparcialidade, não
houve qualquer violação, pois cremos que foi feita uma ponderação
entre os interesses públicos e privados, não estando o Governo a
ser parcial ao encerrar a Maternidade. Pensamos que a decisão de
encerramento foi justa, uma vez que a situação de crise em que
vivemos, obriga a certos cortes financeiros, para que se mantenha o
nível de vida num patamar sustentável.
Alega
ainda o autor que existe uma tradição na sua família de nascerem
naquela maternidade. Porém, tal não lhe confere legitimidade para
impugnar o encerramento da maternidade.
O
artigo 267º CRP atribui aos cidadãos o direito de participação no
procedimento. Relativamente ao despacho do Ministro, o procedimento
adequado para que houvesse participação dos mesmos, seria a
consulta pública, uma vez que há dispensa de audiência dos
interessados, por estes serem de elevado número (artigo 103º, nº
1, alínea c) CPA). Deste modo, não se verifica a nulidade do acto,
nos termos do artigo 133º, nº 1 do CPA.
O
Ministro também poderia pedir um parecer ao Conselho Nacional da
Saúde “ órgão consultivo do Governo” (Lei de Bases da Saúde,
Base VII).
Outro vício
invocado é o de falta de fundamentação da decisão de
encerramento.
O
dever de fundamentação é outra garantia constitucional dos
administrados (artigo 268º, nº 3 da CRP). A fundamentação dos
actos administrativos deve ser expressa através de uma exposição
sucinta dos fundamentos de facto e de direito, o que pode ser feito
por mera declaração de concordância com os fundamentos de
anteriores pereceres, informações ou proposta, que constituirão
nestes casos parte integrante do respectivo acto (art 125º/1CPA). A
decisão de encerramento apresenta falta de fundamentos o que, à
letra do nº2 do art 125º CPA, equivale à falta de fundamentação
e constitui uma ilegalidade.
Com
base em todas estas considerações, concluímos pela improcedência
da acção intentada, devido à actual conjuntura económica, que
levou o Estado português a pedir um empréstimo extraordinário. Por
conseguinte, não obstante os direitos fundamentais se encontrarem no
topo das prioridades do Estado de Direito Democrático, devemos
atender à realidade económica e orçamental do Estado. Assim, à
luz da reserva do financeiramente possível, consideramos não
existirem meios económicos para a subsistência da existência da
Maternidade Alfredo dos Campos.
Relativamente
à incompetência do Presidente do Conselho Directivo da ARSLVT
(Despacho n.º 78/2012 do Presidente do Conselho Directivo da
Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, de 27 de
Abril de 2012):
Quanto
à violação de direitos, princípios e legalidades alegados na
petição inicial, remetemos para o supra referido relativamente ao
despacho do Ministro da Saúde.
Contudo,
o Presidente da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale
do Tejo (ARSLVT), nos termos do artigo 5º, nº 2, alínea a) da Lei
Orgânica das Administrações Regionais de Saúde, concordamos com o
autor quando refere que “a competência para coordenar a
organização e o funcionamento das instituições e serviços
prestadores de cuidados de saúde da respectiva região, cabe ao
Conselho Directivo da ARS e não ao respectivo presidente, que não
invoca qualquer delegação de poderes” no quesito 104º da PI.
Desta
forma, o despacho do Presidente da ARSLVT é anulável, de acordo com
os artigos 135º e 136º do CPA.
Tendo
em consideração o que foi anteriormente referido, somos de parecer,
ao abrigo dos poderes que são conferidos ao MP, que deve ser
considerado procedente o pedido de anulação do acto do Presidente
da ARSLVT, por incompetência desse órgão.
Os
Procuradores-Gerais
Ana
Maria Costa
Ânia
Conceição Vaz
Inês
Grilo
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